Existem espetáculos que nos impactam de um modo tão grande, que definí-los através de palavras é muito difícil.
É uma apunhalada. É pra rir e se emocionar.
Uma mistura inteligente entre Shakespeare, Sonho de uma noite de verão e a ditadura chilena.
O ano é 1973, o ano do meu nascimento e o que já é marcante, fica mais ainda porque já era viva durante a Ditadura no Brasil e no Chile, mas por ser muito criança, só tive a real noção do pesadelo quando já estava na faculdade de História e comecei a me interessar pelo estudo das Ditaduras. Ora, é preciso falar sempre nos horrores dos governos autoritários e nos destroços que eles causam, e como causam, para que a democracia prevaleça SEMPRE.
Em Suēno, um grupo de teatro está ensaiando Sonho de uma Noite de Verão, de Shakespeare. Sonho e realidade se misturam na peça de Newton Moreno, assim como na peça do bardo inglês.
Um casal de militantes, Vine e Laura, foge de seu país, e é separado pela ditadura quando ela está grávida. Presa, ela acaba morrendo, vítima da vingança de um militar que por não ter o seu amor correspondido, expõe a moça, de uma família da elite chilena (filha de um minerador já falecido de extrema direita), aos horrores dos porões ocupados pelos prisioneiros políticos.
Vine é diretor da companhia que ensaia o clássico de Shakespeare e a peça não estreia devido devido ao exílio do artista.
Em seu exílio, Vine sonha todas as noites com a peça.
Com o fim da ditadura, em 1993, Vine retorna ao Chile com esperança. Estrear Sonho de uma noite de verão é questão de honra e
ele não descansará até reencontrar a sua família: a amada, que supõe estar viva, e a filha .
A mãe de Laura, uma socialite fútil, também vive em função do reencontro com a filha e neta. Quando ela finalmente descobre que a neta está viva, vai ao seu encontro, mas como ela culpa Vine por todo o mal que aconteceu à Laura, ela vai dificultar ao máximo o reencontro entre o pai e filha.
A tragédia acompanha a sina de Vine: o sonho de estrear a sua peça pode cai por terra diante da especulação imobiliária (uma grande construtora quer comprar o terreno de seu antigo teatro).
Para piorar a situação, ele descobre que Laura faleceu e o encontro com a sua filha acontece, mas é a solidificação de mais uma tragédia na sua vida por culpa da sua ex sogra.
O eco do autoritarismo é tamanho que por décadas o Chile viveu sob os tormentos causados por Pinochett e seus apoiadores. Toda a trama familiar de Suēno é apenas um pequeno retrato do quanto viver sob regime autoritário destrói vidas, amores e sonhos.
Nos momentos em que retrata a ditadura, o espetáculo é pesado, muitas vezes asfixiante. Nas cenas de Sonho de uma noite de verão a encenação ganha leveza, uma leveza necessária porque logo vem mais uma enxurrada de fatos impactantes, de fortes emoções.
Suēno é a esperança de uma América Latina livre, do teatro valorizado e do amor vencendo o ódio.
O teatro nos salva do caos e para Vine é o teatro que o coloca em conexão com o amor que sente por Laura, é o vetor de transformação da sociedade.
O que o manteve vivo no exílio foi o desejo de voltar à sua terra natal e finalmente estrear o projeto de sua vida, a encenação de Sonho de uma noite de verão.
Teatro, metateatro, amor, ódio, vingança, sonho, a realidade do terror da ditadura, a arte que salva do caos, incesto, a mesquinhez que devora a alma, a especulação imobiliária que ameaça a luz da arte... num emaranhado de fatos, emoções, tensões e reflexões, Suēno é o teatro que pulsa e coloca no palco questões pertinentes porque a ditadura, em pleno 2023, não é ficção. Acabamos de passar por uma pandemia e por um governo de tendências fascistas no Brasil. Suēno é ambientado no Chile, mas fala do quanto o teatro transforna e do quanto a liberdade é essencial para que o amor e o respeito emanem no mundo.
Através do onírico, da música executada ao vivo, da farsa, cenas milimetricamente desenhadas e interpretadas por excelentes atores, Suēno é um espetáculo que arrebata o público.
Ficha técnica
Dramaturgia e direção geral: Newton Moreno
Direção de produção: Emerson Mostacco
Direção musical: Gregory Slivar
Direção de movimentos: Erica Rodrigues
Elenco: Leopoldo Pacheco, Sandra Corveloni, Paulo de Pontes, José Roberto Jardim, Michelle Boesche, Simone Evaristo e Gregory Slivar (músico ao vivo)
Atriz criadora da primeira temporada: Denise Weinberg
Desenho de luz: Wagner Pinto
Figurinos: Leopoldo Pacheco e Chris Aizner
Adaptação de cenário: Equipe de criação do Sueño
Colaboração (cenário): Chris Aizner
Visagismo: Leopoldo Pacheco
Assistente de dramaturgia e pesquisador: Almir Martines
Assistentes de direção: Katia Daher (primeira etapa) e Erica Rodrigues
Assistente de produção: Paulo Del Castro
Assistente de luz: Gabriel Greghi
Adereços e cenotécnico: Zé Valdir Albuquerque
Estrutura de box truss: Fernando Hilário Oliveira
Desenho de som: Victor Volpi
Operador de luz: Gabriel Greghi
Operador de som e microfone: Dugg Mont
Microfonista: Matheus Cocchi
Historiador e consultor shakespeariano: Ricardo Cardoso
Palestrante: Sérgio Módena
Assessoria de Imprensa: Itaú Cultural
Social media: Isis Böell
Designer: Leonardo Nelli Dias
Fotos: João Caldas
Assistente de fotografia: Andréia Machado
Produção audiovisual: Ìcarus
Apoio paisagístico: Assucena Tupiassu
Costureiras: Lande Figurinos e Judite de Lima
Equipe de montagem de luz: Gabriel Greghi e Gabriela Cezário
Equipe de montagem (cenário): F.S. Montagens e Paulo Amendola
Estagiários (primeira temporada): Camila Coltri, Fernando Felix e Marcelo Araújo
Estagiários (segunda temporada): Bianca Vizzoto, Eleonora Bronzolli, Heloísa Pereira e Igor Carvalho
Produção: Mostacco Produções
Idealização: Heroica Companhia Cênica
Realização: Itaú Cultural
Três excelentes atores que tenho o privilégio de acompanhar a trajetória, em trabalhos individuais e nas realizações como integrantes do saudoso grupo teatral Os Fofos:
Paulo Pontes é de uma versatilidade que merece menção. Com perfeição, vai do mais doloroso drama à comédia escrachada! Um show! Leopoldo Pacheco grande ator que faz com maestria um nojento que abusa de mulheres sem dó nem piedade e é um dos responsáveis pelos horrores da Ditadura. Quando o personagem está velho, perturbado, mas não menos escroto, Pacheco tem o ponto mais alto de um trabalho primoroso do início ao fim. Zé Roberto Jardim é a consagração de um ator seguro e que transmite com precisão os sonhos e o desespero do seu personagem ao constatar que a tragédia é algo que nunca deixará de estar presente no seu caminho |