Com a peça peça Miró: Estudo Nº 2, grupo pernambucano Magiluth reverencia o poeta marginal Miró da Muribeca
Cultura popular, preta, periférica, urbana
Riqueza nordestina e brasileira
Carnaval
Miró da Muribeca
Deus largado pelas ruas de Recife
não sabe se dança frevo
ou vai atrás do maracatu
será que Deus também tem dúvidas?
nas ruas
igrejas e povo
Deus deixa beijar
usar a roupa que quiser
são quatro dias
que Deus não tá nem aí
aí, na quarta-feira de cinza
Deus de ressaca
perdoa quase todo mundo
– Poema do livro aDeus (Mariposa Cartonera)
★★★
olhei para o passado
as folhas dos calendários
caindo
é preciso plantar cedo sua árvore
pra mais tarde ter uma sombra
que lhe agasalhe
– Poema do livro aDeus (Mariposa Cartonera)
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Mariposa Cartonera é um coletivo artístico-editorial sediado no Recife que confecciona livros com capas de papelão reutilizado pintadas e costuradas artesanalmente.
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O Grupo Magiluth é crítico, divertido, inteligente, apaixonante.
O Itaú Cultural recebe de 20 a 30 de abril (de quinta-feira a domingo) o grupo pernambucano com a peça Miró: Estudo Nº 2.
Com esse trabalho, o grupo mergulha no universo criativo do poeta Miró da Muribeca (1960-2022), artista de rua que retratava a periferia de Recife. Muribeca é um bairro da cidade no qual o artista residiu.
Iniciou na poesia com versos marcados pelo lirismo, mas o ápice da sua criação ocorreu a partir do momento em que começou a refletir sobre a violência e o preconceito - tão presentes no cotidiano dos pobres e pretos.
Miró publicou mais de 15 livros e tem poemas traduzidos para o espanhol e para o francês.
A vida e a criação do poeta é o foco desse trabalho.
Os atores expõem detalhes e reflexões sobre a criação de um personagem teatral baseado na vida e trajetória do poeta pernambucano. Como interpretar um personagem real? Existe um limite entre realidade e ficção?
Ao retratar uma figura pernambucana, até que ponto é possível abranger um público que não o conheceu?
Ao falar de um artista que tinha como inspiração a rua, a periferia, com certeza é possível abordar os anseios, os problemas e as benesses de muitas pessoas que vivem uma rotina parecida com a retratada pelo poeta Miró.
João Flávio Cordeiro da Silva, é o nome completo do poeta Miró da Muribeca, importante nome da literatura marginal nordestina.
Na impossibilidade de retratar com precisão o João Flávio e a sua genialidade em falar dos problemas de quem é invisível no dia a dia (impossibilidade não por falta de competência do trio Magiluth, mas por eles acreditarem que nenhuma construção de personagem pode dar conta de retratar uma personalidade que é tão admirada e especial)
eles tomaram a decisão de criar um trabalho não linear, com pedaços da vida e do pensamento de Muribeca. São interpretações que mostram a sua essência, mas sem a pretensão de levá-lo ao palco através de um personagem do teatro tradicional.
O espírito urbano e criativo de Muribeca está na alma dos integrantes do Magiluth, através de cenas que evocam o teor dos poemas. Eles (re)criam passagens da vida do homenageado e também apresentam a visão particular sobre o amor e as relações humanas.
Miró vendia os seus livros caminhando na ponte que ligava o Conjunto Habitacional Muribeca à cidade de Recife. O artista ficou conhecido realizando performances nas ruas e é através de uma encenação que dialoga com a performance, com o chamado teatro pós moderno, com a música e o cinema, que a cia Magiluth aproxima o espectador de Miró.
São os atores que manipulam o cenário formado por aparatos eletrônicos e visuais. Uma estética que nos conecta com a arte urbana.
Miró Estudo n2 é Teatro, relatos, reflexões, audiovisual, música (eletrônica, urbana, ligada ao hip hop) e poesia.
A alma de Miró está no tablado.
Não é um espetáculo para receber críticas, é um espetáculo para ser apreciado.
Os atores, com a colaboração de Luiz Fernando Marques Lubi e Giovana Soar, criaram um jogo cênico instigante.
Os ingressos gratuitos devem ser reservados pela plataforma INTI. Eles são disponibilizados semanalmente a partir da quarta-feira anterior à apresentação (no serviço, ao final do texto, estão todas as datas de início das reservas).
Miró: Estudo Nº 2 pretende mostrar ao público o processo de criação de um espetáculo que homenageia um artista brasileiro que deixou marcas na cultura marginal recifense.
Esse modo de encenação teve início durante a pandemia, em Estudo n°1: Morte e Vida, que estreou em 2022 e explicitou caminhos para a construção de um espetáculo teatral a partir da obra Morte e Vida Severina, do escritor também pernambucano João Cabral de Melo Neto.
Com Miró: Estudo Nº2 a ideia é tentar entender como o conteúdo poético de Muribeca reverbera nos atores do Magiluth e em cada espectador presente no teatro.
Miró faleceu, mas o valor de sua obra e das suas reflexões através da literatura estão vivas.
SERVIÇO
Miró: Estudo N°2
Com Grupo Magiluth (PE)
De 20 a 30 de abril (sempre de quinta-feira a domingo)
Quinta-feira a sábado, às 20h.
Domingos e feriados às 19h
Sala Itaú Cultural (Piso Paulista)
...
tem gente que nunca andou de bicicleta
mas sabe pedalar a sua vida
tem gente que fuma cigarro e morre de câncer
antes de quem fuma maconha
tem gente que diz bom dia
e do nada morre à tarde
tem gente que nunca foi ao cinema
e sua vida virou filme
tem gente que compra carros novos
e morre atropelado
tem gente que pensa que é moderna
e é primata até dizer bosta
tem gente que se falta luz
nem um candeeiro acende
tem gente que nem o poste suporta
tem gente que no bar fala demais
e esquece de pagar a conta
tem gente que nem a conta paga
e os dinossauros nunca souberam
que o homem existiu
– poema do livro O penúltimo olhar sobre as coisas (Mariposa Cartonera)
Miró da Muribeca
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fico olhando o mundo
não me sinto bem agora
agora sinto um
desejo
de não estar mais aqui
mas agora que aqui estou
suporto meus
54 quilos
e vários amores que se foram
a vida é um ônibus
vai levando você
o problema é em que parada
nós vamos descer
Miró da Muribeca
– poema do livro O penúltimo olhar sobre as coisas (Mariposa Cartonera) |